quarta-feira, 16 de outubro de 2013

"Defeitos da Constituição foram obra do atraso"

 Depoimento de José Serra
Folha de S.Paulo
Luciano Andrade/Folhapress 
Serra conversa com Fernando Henrique Cardoso (esq.) e Geraldo 
Alckmin na Constituinte.

Nos 25 anos da Constituição que Ulysses Guimarães classificou de "cidadã", alinho-me 
com aqueles que avaliam que uma das virtudes da Carta é sua vocação garantidora de 
direitos. 
Foi, nesse caso, o bom uso que se fez de circunstâncias que não eram da nossa escolha. 
Explico-me: finda a ditadura militar, a nova Lei Maior procurou expressar o seu repúdio 
ao autoritarismo, precavendo-se de tentações golpistas e da agressão a direitos individuais. 
Mas também é preciso dizer que fizemos uma Carta excessivamente marcada por 
contingências, com o olhar, muitas vezes, posto no retrovisor. Seus defeitos, curiosamente, 
não foram obra nem da esquerda nem da direita, mas do atraso. No Brasil, infelizmente, 
os direitistas costumam deixar de lado o conservadorismo virtuoso, e os esquerdistas, 
o igualitarismo generoso.

Poucos parecem divergir, a esta altura, da constatação de que o principal mérito da 
Constituição 
de 1988 é a consagração das liberdades democráticas --de opinião, manifestação e 
organização-- e das garantias individuais: a criminalização inequívoca do racismo, 
a abolição do banimento e 
da pena de morte, o livre exercício dos cultos religiosos, o repúdio à tortura e a 
tratamentos desumanos ou degradantes dos cidadãos etc. Isso tudo ficou condensado no 
artigo 5º, o mais extenso da Carta, com quatro parágrafos e 78 incisos.

À parte o capítulo das liberdades públicas e individuais, destaco, em planos distintos, 
como os maiores avanços da Carta de 1988 a concepção do SUS; a criação de 
um fundo (posteriormente chamado FAT) que reuniu as contribuições do PIS/Pasep para 
tornar viável o seguro-desemprego e, ao mesmo tempo, financiar investimentos; o dispositivo 
que definiu o salário mínimo como o piso dos benefícios previdenciários de prestação 
continuada; os capítulos que lidam com finanças públicas e controle externo ao Executivo 
e ao Legislativo --os Tribunais de Contas, por exemplo, foram extremamente fortalecidos 
nas suas atribuições; novos marcos para a política ambiental; o fortalecimento do Ministério 
Público e a instituição do segundo turno na eleição para presidente, governadores e prefeitos 
em cidades com mais de 200 mil eleitores.

Mas há também alguns defeitos severos, que apontei e combati quando deputado 
constituinte --muitas das críticas foram expressas em artigos semanais nesta Folha: a prolixidade; 
as concessões de natureza corporativa; a prodigalidade fiscal; a falta de um regime geral 
de previdência mais homogêneo e adequado ao longo prazo; o atrelamento dos sindicatos 
ao Estado e a falta de inovação em matéria de sistema político e eleitoral. Deixo de mencionar 
aqui algumas aberrações aprovadas a respeito da ordem econômico-financeira, removidas 
nos 15 anos seguintes por intermédio de emendas constitucionais. Tomei a iniciativa, como 
senador, de escoimar da carta os absurdos na área financeira. Contei com o apoio, faça-se 
justiça aos fatos, do então líder do PT no Senado, José Eduardo Dutra.

A prolixidade não precisa ser provada; é autoevidente: 250 artigos e 70 disposições 
transitórias, com numerosos parágrafos e incisos, muitos deles típicos de leis ordinárias, 
decretos, portarias ou simples declarações de intenção em discursos parlamentares. 
Um exemplo pitoresco? A constitucionalização da existência da Justiça Desportiva e a 
garantia de "proteção e incentivo às manifestações desportivas de criação nacional", 
o que, por óbvio, deixou de fora o futebol, o vôlei e o basquete...

Ao contrário do que se pensa, os interesses corporativos principais cravados na 
Constituição não foram os do setor privado, mas os da área da administração pública, 
de que é exemplo escancarado a estabilidade para os servidores não concursados 
de órgãos públicos que estavam empregados havia mais de cinco anos da data de 
promulgação da Carta. Abriu-se caminho ainda para toda sorte de isonomias salariais, 
permanente e poderoso mecanismo gerador de despesas.

Esse aspecto corporativista da Constituição representou um fator decisivo na 
chamada prodigalidade fiscal. Outro foi a forte redistribuição federativa de receitas 
tributárias, sem que houvesse, paralelamente, nenhuma descentralização de encargos
 --feroz e eficazmente combatida pelas corporações de funcionários e de clientes 
dos setores envolvidos.

Se a força e a amplitude dos direitos e garantias fundamentais deveu-se à ruptura com 
um regime de força --tratava-se de esconjurar o passado--, os defeitos da Carta de 
1988 estão relacionados a contingências políticas e às falsas expectativas que gerou. 
Afinal, a Assembleia Nacional Constituinte tinha sido uma bandeira da oposição ao 
regime militar desde a segunda metade da década de 1970. Não era vista apenas como 
o umbral da liberdade, mas também da prosperidade e da justiça social.

Havia uma expectativa de elevação imediata do bem-estar social, o que havia sido 
proporcionado, note-se, pelo Plano Cruzado, na sua fase bem-sucedida em 1986, 
proporcionando muitos votos ao PMDB nas eleições desse ano. Ocorre que a 
agonia do plano coincidiu com o início dos trabalhos da Constituinte, no começo 
de 1987. A inflação de dois dígitos mensais, fator de profunda perturbação e 
instabilidade social, fez sombra na Assembleia até o fim. Parlamentares e partidos 
se moviam freneticamente para mostrar serviço aos eleitores e para responder a 
demandas da opinião pública, procurando mitigar insatisfações com a criação 
de preceitos constitucionais. Ou por outra: uma Carta Constitucional, que é feita, 
por definição, para durar e para estar acima de contingências, transformava-se em 
fator de ajuste de tensões sociais e conflitos distributivos corriqueiros.

O colapso da estabilidade econômica enfraqueceu rapidamente o governo Sarney e
ampliou a distância entre o mandatário e o PMDB, partido ao qual se filiara exclusivamente
para assumir a condição de vice na chapa encabeçada por Tancredo Neves. O setor mais 
influente do partido deu início aos trabalhos para redigir a nova Carta procurando 
diferenciar-se do governo. Ganhou força a ideia de uma Assembleia que editasse 
atos constitucionais que se sobrepusessem ao Executivo. Isso acabou não acontecendo, 
mas inaugurou um tipo de conflito que se manteria até o final do processo constituinte.

O confronto mais relevante teve como objeto a duração do mandato de Sarney, que tinha 
sido eleito com Tancredo para governar por seis anos, mas aceitava cinco. O então 
líder da bancada do PMDB, Mário Covas, defendia quatro e emplacou esse número numa 
primeira versão da Constituição, vinda da Comissão de Sistematização, em meados de 1987, 
junto com a aprovação do parlamentarismo. O presidente Sarney propôs um acordo: 
apoiaria o parlamentarismo se lhe dessem cinco anos e o direito de indicar um 
primeiro-ministro com estabilidade inicial de dez meses, se a memória não me falha. 
O PMDB recusou a oferta. O governo não mediu esforços para garantir os cinco anos, 
recorreu a todas as armas da fisiologia, para dizer o mínimo, e saiu vitorioso. O trágico 
é que o parlamentarismo acabou sendo tragado pela voragem.

A impopularidade e a insegurança do governo, determinadas pela inflação galopante 
e pelos conflitos com a Assembleia, retiraram do governo a capacidade de assumir 
um papel relevante na formação do texto constitucional. Na verdade, o Planalto s
e omitiu, especialmente em relação aos gastos --chegou a apoiar medidas nesse sentido. 
O chamado Centrão, um agrupamento de parlamentares mais ligados ao governo, 
só tinha compromisso com os cinco anos e o presidencialismo. No mais, dispôs de plena 
autonomia para defender suas propostas.

É preciso destacar ainda as condições difíceis em que atuou o PMDB, o maior 
partido do Congresso. Era já uma força extremamente heterogênea, cindida por 

interesses regionais. Chegou à Constituinte sem uma concepção sobre a Carta ou a 
forma de organizar o trabalho. Além disso, ficou politicamente dividido entre suas 
duas figuras principais, ambos aspirantes à Presidência nas eleições seguintes: Ulysses 
Guimarães e Mário Covas. O primeiro era o presidente da Assembleia; o segundo, 
líder do partido, eleito contra o candidato de Ulysses.

Alguns analistas se confundem ao procurar entender o texto constitucional a partir da 
dinâmica de conflitos entre "esquerda" e "direita". A chamada direita, no Brasil, não 
se expressa pelo conservadorismo, mas pelo atraso. Nem remotamente é austera. 
O texto substitutivo do Centrão era mais gastador e prolixo, mais recheado de 
casuísmos, privilégios corporativos, vinculações e isonomias do que o já pródigo projeto 
que fora por ele derrubado, da Comissão de Sistematização, este sim comandado pela 
fatia do PMDB que se afastara do governo. Mesmo o Centrão, note-se, manteve no 
seu projeto todas as garantias democráticas do relatório que conseguiu derrubar. Estas 
não foram objeto de nenhum confronto significativo no desenrolar de todo o processo. 
E, só por curiosidade, foi do Centrão, do deputado Gastone Righi, a criação do abono 
de férias para todos os assalariados...

O que se poderia chamar "esquerda", à época, era dominada pela concepção do Estado 
varguista e pelas ideias das décadas de 50 e 60, alienadas das mudanças que já 
estavam acontecendo no mundo e que só começariam a tornar-se mais transparentes 
no Brasil depois da queda do Muro de Berlim. Para ela, eram exóticas as preocupações 
com inflação, quadro fiscal, travas ao investimento privado e paternalismo estatal, sem 
mencionar a confusão permanente e até contradição entre benefícios para corporações 
restritas e os interesses sociais mais amplos.

Os dois lados exibiram seu antagonismo --o que politicamente convinha a ambos-- 
com farta cobertura da imprensa. O tema foi a reforma agrária, e o confronto se deu 
em torno da função social da propriedade e da possibilidade de desapropriar 
propriedades produtivas. Tudo acabou resolvido em dois artigos. Noves fora as 
diferentes formas de lidar com o MST e com a inconstitucional violência rural, 
nenhum governo posterior procurou mexer no texto desses artigos nem deixou de 
levar adiante o caríssimo processo da reforma agrária.

Não por acaso, os dois lados, com a cumplicidade de sucessivos governos, foram 
e continuam sendo integrantes ativos do mais consolidado de todos os partidos brasileiros: 
a Fuce --Frente Única Contra o Erário e a favor das corporações de interesses especiais. 
Ninguém e mais falsamente de esquerda do que ela. Ninguém é mais falsamente de direita 
do que ela. Ninguém, como ela, é tão objetivamente contra os interesses do Brasil e dos
brasileiros.

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