terça-feira, 15 de julho de 2014

O bolero da inflação.

                                                               Foto:Marcos Brindicci/Reuters
O bolero, ritmo popular na América Latina, pode ser levado solitariamente, por um único bailarino. O mais comum, no entanto, é que casais enamorados serpenteiem pelo salão, olhos nos olhos, dois passos para lá e dois para cá. Dá-se o mesmo no bolero da inflação. Para que bailar sozinho? A Venezuela de Hugo Chávez, até recentemente, dançava um solo. Em um continente obcecado em apagar da memória o descontrole nos preços da década de 80, o país vinha rodopiando solitário sob o compasso de reajustes superiores a 10% ao ano. Agora a Venezuela encontrou um acompanhante: a Argentina. Há duas semanas, o presidente Néstor Kirchner afastou a diretora do Indec – o IBGE argentino –, responsável pelos cálculos da inflação, porque ela se negou a contabilizar por baixo o reajuste nos planos de saúde, que teria grande peso no cômputo geral da inflação. Pela metodologia correta do Indec, o índice argentino seria de 2,1% – o que projetaria uma inflação anual superior a 20%. Por interferência pessoal de Kirchner, a taxa caiu para 1,1%.
Na semana passada, Chávez deu um novo passo nesse bolero melancólico. Anunciou, durante o seu programa televisivo Alô Presidente, detalhes de um plano desatinado para conter a alta de preços. O projeto prevê o confisco de mercadorias para coibir a especulação e determina o corte de três zeros do bolívar, a moeda local. Previstas para ser implementadas no ano que vem, as medidas criarão o (suposto) "bolívar forte". Na verdade, trata-se de cópia descarada do fracassado Plano Cruzado brasileiro, de 1986. A Venezuela já vinha tentando controlar os preços fazia algum tempo. Mas, assim como no tabelamento do Cruzado, o resultado tem sido desastroso: gôndolas vazias nos supermercados. "Esses países estão se valendo de todas as estratégias que o Brasil utilizou sem sucesso no passado", afirma a economista Eliana Cardoso, referindo-se a confiscos, congelamento e manipulação de índices.
Segundo especialistas, não surpreende que os campeões de inflação sejam governos com tendências populistas ou de viés totalitário. Na luta para permanecer no poder, eles tendem a estimular o crescimento com ações perdulárias. O resultado não poderia ser outro senão a alta de preços. "Não podemos esquecer o que o economista americano Milton Friedman nos ensinou: a inflação é sempre e em todo lugar um fenômeno monetário. Se a maquininha do governo estiver imprimindo dinheiro, não há saída, haverá inflação", diz Eliana Cardoso. Quando os preços sobem, esses governos tentam manipular o índice, às vezes atropelando órgãos estatísticos tradicionais, como no caso argentino. Se isso não for possível, colocam a culpa nos "especuladores", como chamam os empresários. Leis draconianas são aprovadas para confiscar ou estatizar propriedades desses "inimigos do povo". Não causa surpresa que, fora da América Latina, países como o Irã de Mahmoud Ahmadinejad, fundamentalista islâmico com viés populista, enfrentem o mesmo problema. O Irã tenta sufocar na marra o fantasma da inflação. Pelos índices oficiais, a inflação no país gira em torno de 15% ao ano. Mas a taxa real seria pelo menos o dobro disso.
Na avaliação de George Avelino, cientista político da FGV, quanto maiores as manipulações dos índices de inflação e de outros indicadores, menos efetiva é a democracia. "E menores as chances de o Estado intervir na economia de forma a promover o bem-estar geral no longo prazo", afirma ele. Ou seja, embora os dois países estejam crescendo a taxas de fazer inveja aos desenvolvimentistas brasileiros, trata-se de uma bolha que não pode ser confundida com desenvolvimento sustentável. Vale lembrar ainda que, a despeito de a economia argentina ter crescido acima de 8% nos últimos três anos, seu tamanho, medido em dólares, é ainda inferior ao do período pré-crise (veja gráfico abaixo).
Enquanto Argentina e Venezuela optam pelos mesmos vícios econômicos da década de 80, a economia mundial vive uma fase dourada de crescimento – ainda que às vezes insatisfatório, como no caso brasileiro – com baixa inflação. O motivo desse cenário é que, com a globalização, a concorrência tornou-se bem mais acirrada, forçando a queda de preços. Além disso, os países aprenderam, a duras penas, que não se brinca com o reajuste de preços. Se os bancos centrais baixam sua guarda, a inflação volta com força, como uma bola de neve que se transforma em avalanche. Isso porque as pessoas e as empresas tendem a indexar salários e preços. Se a inflação fosse inofensiva, como pregam alguns economistas brasileiros, Chávez e Kirchner não se esforçariam para manipular índices, tabelar preços e aprovar leis de confisco para assegurar o abastecimento. Nessa milonga populista destinada ao fracasso, quem dançará será a população de Venezuela e Argentina.

*Giuliano Guandalini, com reportagem de Julia Duailibi - http://veja.abril.com.br/280207/p_056.shtml

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